Albert Camus — É necessário imaginar Sísifo feliz: O absurdo e a imanência
“Não há destino que não se supere pelo desprezo.” Não faltam argumentos que nos incentivem fugir do caótico “mundo absurdo”, para uma abstração, para um reino de paz e prosperidade eternas. Entretanto, se rejeitarmos a transcendência seria possível viver na pura imanência?

No prefácio de o avesso e o direito republicado em 1957, Albert Camus faz um balanço da sua obra, e sua vida. Não é uma tarefa fácil olhar para sua própria biografia e pesar o julgo da autocrítica. Camus não era mais aquele menino que corria pelos bairros proletários de Argel, que se deslumbrava com o sol mediterrâneo, enquanto viva a extrema pobreza de seus semelhantes, nem o jovem de vinte e poucos anos filiado ao PCA (Partido Comunista Argelino), que pagou um preço alto por denunciar os abusos dos colonos contra os árabes em Argel, ou ainda jovem editor de COMBAT na luta contra os nazistas que ocupavam a França, e o governo colaboracionista de Vichy. O Camus naquele momento, que escreve esse prefacio, era um homem maduro, um reflexo fiel da sua sensibilidade ao conflito absurdo da existência humana, já tinha rompido suas relações com Sartre e sofrido todas as represálias politicam e pessoais que a publicação do O Homem revoltado (1952), tinha lhe cobrado.
Toda via o que encontramos naquele prefacio não é um homem fragilizado, ou ressentido, mas um homem coerente com a verdade que lhe pareceu mais próxima do coração em sua juventude. Se observarmos a totalidade da obra de Camus, pensaremos uma obra que tem uma coerência temática estrita e as imagens que se formaram em 1937 na primeira publicação de O avesso e o direito acompanham a vida do autor até sua última publicação oficial: A queda (1956).
“Assim, cada artista conserva dentro de si uma fonte única, que alimenta durante a vida o que ele é e o que ele diz. Quando a fonte seca, vê-se, pouco a pouco, a obra encarquilhar-se e rachar. São as terras ingratas da arte, que a corrente invisível não mais irriga. […] Nesse caso, sei que minha fonte está em O avesso e o direito, nesse mundo de pobreza e de luz que vivi durante tanto tempo, e cuja lembrança me preserva, ainda, dos dois perigos contrários que ameaçam todo artista: o ressentimento e a satisfação.” (CAMUS, 2010, p.14)
Não é por acaso que essa postura coerente do escritor inspira, e impulsiona a reflexão dos que tem contato com seus textos. Há nos textos de Camus um lirismo contundente e uma sensibilidade que só poderia nascer verdadeiramente de uma experiência existencial de fronteira. E onde está localizada está fronteira, ou essa região temática que o escritor franco argelino convida seus leitores a demorar na reflexão: o absurdo.

Quem abre O mito de Sísifo (1942), se depara com uma das frases mais impactantes e que marcaram o nome do autor para seus leitores. “Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia.” (CAMUS, 2010, pág. 17). Camus no momento que recorta seu problema ele demonstra também sua urgência. Não era objetivo do autor demonstrar quais os fatores sociais, econômicos e históricos levariam uma pessoa a optar pela morte. Isso Émile Durkheim, já tinha apresentado com grande minúcia, o que interessava a Camus era determinar se haveria sentido manter esta vida diante de tudo que um homem poderia vivenciar. Essa é a questão de maior urgência para a filosofia, por que determinando então se a vida vale ou não ser vivida, poderíamos encarar os demais problemas da existência humana que são nomeados pela investigação da filosofia. Afinal, a própria filosofia depende da preservação da vida e da sua afirmação.. como uma obviedade: os mortos não estão buscando as implicações ontológicas.
O campo de trabalho de Camus é a vida, e a vida na sua imanência, grande parte inicial de O mito de Sísifo é um processo de argumentação contra certas teorias que buscam evadir a vida de sua imanência e depositar seu sentido em um campo eterno e ideal. E, no momento que o autor nos aponta seu objeto, e seu problema, ou seja, a existência e o valor da vida, ele também delimita seu campo de ação: O mundo material. (Aqui defino, mundo material para evitar a comum tentação de assosciar o pensamento de Camus, com outras idealizações de “mundos possiveis”, o mundo do absrsudo, é o aqui e o agora).
“Acaba sempre chegando um tempo em que é preciso escolher entre a contemplação e a ação. Chama-se isso tornar-se um homem. Essas dilacerações são terríveis. Mas, para um coração orgulhoso, não pode haver meio termo. Há Deus ou o tempo, essa cruz ou essa espada. Esse mundo tem um sentido mais alto, que ultrapassa as suas agitações, ou não há nada verdadeiro a não ser essas agitações. É necessário viver com o tempo e morrer com ele ou se subtrair a ele para uma vida maior. Sei que se pode transigir e que se pode viver no século acreditando no eterno. Isso se chama aceitar. Mas essa palavra me repugna, e eu quero tudo ou nada. Se escolho a ação, não pense que a contemplação me seja como uma terra desconhecida. Mas ela não pode me dar tudo e, privado do eterno, quero me aliar ao tempo.” (CAMUS, 2010, pág. 103)
O mundo de Camus é o mundo da contingência, é um mundo que é reconhecido pelos sentidos, uma realidade de atrito e contato, e este mundo tem um movimento próprio, ou seja, ele não está submisso à razão humana, nem muito menos está submisso a suas teorias. O que faz o homem? O homem tenta dar ordem, forma e similaridade a realidade. Para Camus a paixão humana reside na sua obsessão em converter tudo sua imagem e sua semelhança. O movimento da razão é reduzir tudo em termos humanos, e assim construir um teatro familiar sob fundamentos abstratos, metafísicos ou idealistas. É interessante como ele expõe essa dúvida sobre o primado da razão:

“Sejam quais forem os trocadilhos e as acrobacias da lógica, compreender é, antes de tudo, unificar. O desejo profundo do próprio espírito em seus procedimentos mais evoluídos vai ao encontro da sensação inconsciente do homem diante do universo: ele exige familiaridade, tem fome de clareza. Para um homem, compreender o mundo é reduzi-lo ao humano, marcá-lo com o seu selo. O universo do gato não é o universo do formigueiro. O truísmo de que “todo pensamento é antropomórfico” não tem outro sentido. Assim também o espírito que procura compreender a realidade só pode se considerar satisfeito se a reduz em termos de pensamento. Se o homem reconhecesse que também o universo pode amar e sofrer, ele estaria reconciliado.” (CAMUS, 2010, pág. 31–32)
Quando pensamos o mundo em termos metafísicos, quando deduzimos a realidade como uma expressão de uma divina providência, ou de uma profunda e incognoscível razão ordenadora estamos reduzindo a realidade, a nossa imagem, e nossa semelhança. Nomeando, classificando, deduzindo reduzindo a linguagem é a grande ferramenta para essa antropomorfia da realidade. Entretanto, esses movimentos do espirito sobre si mesmo, as deduções que partem da terra em direção ao infinito resultam em última instância no escape. E, o homem cria para si mundos melhores, espíritos fantásticos, termos eternos para escapar da sua condição.
Camus, considera essa ação de fuga: um suicídio filosófico, uma evasão do absurdo. Aqui podemos encontrar um dialogo entre o pensamento Camusiano e do filosofo prussiano Friedrich Nietzsche que chama essa evasão de calúnia contra a vida.
“Terceira Proposição. Criar a fábula de um mundo “diverso” desse não tem sentido algum se pressupusermos que um instinto de calúnia, de amesquinhamento, de suspeição da vida não exerce poder sobre nós. Neste último caso, nos vingamos da vida com a fantasmagoria de uma “outra” vida, de uma vida “melhor”.
“Quarta Proposição. Cindir o mundo em um “verdadeiro” e um “aparente”, seja do modo cristão, seja do modo kantiano (um cristão pérfido no fim das contas) é apenas uma sugestão da décadence: um sintoma de vida que decai… O fato de o artista avaliar mais elevadamente a aparência do que a realidade não é nenhuma objeção contra essa proposição. Pois “a aparência” significa aqui uma vez mais a realidade; só que sob a forma de uma seleção, de uma intensificação, de uma correção… O artista trágico não é nenhum pessimista. Ele diz justamente sim a tudo que é digno de questão e passível mesmo de produzir terror, ele é dionisíaco…” (NIETZSCHE, 2014, pág. 30)

Tanto para Camus, quanto para Nietzsche, de quem recebeu grande influência em sua formação como filosofo, a existência, e a moral são termos imanentes. O destino do homem está em suas mãos (CAMUS, 2010, pág. 140), dada ausência de termos metafísicos em um mundo que só apreendemos através da sensibilidade. AMOR FATI pensou Nietzsche. Honestidade e Revolta sugeriu Camus. Mas ainda não seguiremos esse caminho, é necessário visitar outros termos antes de chegar a Sísifo e sua rocha…
A existência é Absurda; Quando sugiro aqui essa afirmativa eu compreendo a totalidade da existência humana. A existência humana é relacional, não isolada. O homem nasce em um mundo indiferente em escala, caótico e apreende através da sua sensibilidade, os contorno e formas que o mundo é expresso, e sob esse contorno através razão, da cultura ele constrói seu palco, ele constrói seus hábitos, costumes e seus desejos. O mundo é reduzido pela linguagem, pela esperança em seu império particular. O homem deposita sua esperança, na razão, na fé em deus, ou nas misticas crendo que elas são os termos de regulação do universo, como se a justiça, a piedade, e o amor fossem atributos de um universo racional e familiar ele reivindica à seu mundo idealizado a felicidade.
Em O mito de Sísifo, Camus vai indenficar a expressão desse atrito entre o mundo indiferente e a paixão humana: O absurdo. Para ele, por mais que o homem lute ele não poderá reduzir a realidade a sua vontade. E, esse mundo que se move confome o encadeamento de suas proprias forças, e leis move-se de forma indiferente e os efeitos desse “Devir” é o divorcio entre o ator e seu palco. Então pensará Camus, o que acontece quando o mundo foge das nossas determinações? O que ocorre quando todos os argumentos não são suficientes para rebater a morte? Quando a fé, os sistemas, a lógica não consegue justificar com honestidade a fratura entre o exilado e patria em ruinas? Quando o homem encontra essa densidade, essa aspereza que chamamos de absurdo. Pensará Camus, quando a nausea, a lassidão toma o coração do homem e ele se pergunta “Por que?” é onde tudo tem inicio. O absurdo não demarca o fim da vida, ele é o inicio de uma vida consciente de suas possibilidades. O homem, frente ao absurdo, pode encontrar a revolta contra a morte, o destino imposto pelos dos “deuses” e afirmar a vida em sua imanência, ou o suicidio como fim desses conflitos e de todas as possibilidades de prazer.
“A primitiva hostilidade do mundo, através dos milênios, se levanta de novo contra nós. Por um segundo, não a compreendemos mais, porque durante séculos só compreendemos nela as figuras e os desenhos com que previamente a representávamos, e porque doravante nos faltam forças para nos valermos desse artifício. O mundo nos escapa porque volta a ser ele mesmo. Esses cenários mascarados pelo hábito tornam a ser o que são. E se afastam de nós. […] Só há uma coisa: essa densidade, essa estranheza do mundo é o absurdo.” (CAMUS, 2010, pag. 27)
Camus não está nos oferecendo respostas miraculosas para o nossos conflitos existencias, ele está perguntando para o homem que obetem consciencia do absurdo, o que ele vai fazer? A consciencia do absurdo possibilita que o homem extraia da experiência absurda sua liberdade, sua paixão e sua revolta (CAMUS, 2010, pág. 77). Camus rejeita a glorificação da morte, ele toma partido da tradição vitalista e imanênte que fundara na terra suas raizes e buscará na vida, nas experiencias os contrastes entre a tragedia, a beleza e o prazer.
Em certo sentido é minha vida que estou representando aqui, uma vida com o sabor de pedra quente, repleta de suspiros do mar e de cigarras, que agora começam a cantar. A brisa é fresca e o céu, azul. Gosto imensamente desta vida e desejo falar sobre ela com liberdade: dá-me orgulho de minha condição de homem. (CAMUS, 2010, pag. 11)

Está vida solar, repleta de prazeres sensiveis era o fundamento de onde a felicidade para Camus residia. E esse era um fundamento que resistia ao contraste da propria biografia do escritor. Sua vida foi trágica, perdeu o pai na primeira guerra, ainda recen nascido, só teve oportunidade de estudo pela interferencia de um professor que lutou para que ele tivesse uma bolsa e pudesse estudar, cresceu pobre e ao chegar no inico da vida adulta contrai tuberculose, sendo sentenciado a cruzar com uma morte dolorosa, enfrenta o um “exilio”, passa a segunda guerra combatendo os nazistas na frança ocupada.
A vida de Camus espelha suas obras, entrentando onde muitos poderiam ver escuridão e ressentimento pela vida, ele enchergava o sol do meditarrãneo e um profundo desejo de viver e afirmar essa vida. Nesse ponto podemos afirmar que Albert Camus não era pessimista, niilista era um homem consciente da sua condição absurda de homem e dela tinha orgulho. É muito revelador a é pigrafe que ele escolhe nas paginas iniciais de O mito de Sísifo:
“Minha alma não aspira à vida imortal, mas esgota o campo do possível.”
— Píndaro
“É preciso imaginar Sísifo feliz.”
O grosso da sua argumentação em O mito de Sísifo se demonstra em uma jornada em busca de responder a questão do sentido da vida. E, as primeiras paginas da obra apontam para seu desfeixo. Enquanto o inicio interroga sobre o sentido da vida e a viabilidade, ou não do suícido como solução a condição humana, Camus responde no final que é preciso manter a jornada. “É preciso imaginar Sísifo feliz.” Não porque seja uma brincadeira de mal gosto. A vida é um fenomeno único, e deve ser preservada em sua sensibilidade. A dor atravessa a existencia humana, e aqui nesse mundo contigente não há espaço para Deus, providencia ou outras fulgas. Afinal, a metafisica só aguda as contradições desse mundo absurdo.
Já devem ter notado que Sísifo é o herói absurdo. Tanto por causa de suas paixões como por seu tormento. Seu desprezo pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida lhe valeram esse suplício indizível no qual todo ser se empenha em não terminar coisa alguma. É o preço que se paga pelas paixões dessa terra.” (CAMUS, 2010, pág. 138)
A forma como Camus descreve e estabelece o paralelo do absurdo da condenação de Sísifo, da existencia humana é uma experiencia textual profundamente reveladora. Para Albert, Sísifo tinha conscienca da extensão da usa tragedia, ele conhecia a densidade da pedra. E, onde os deuses desejavam ver desespero, arrependimento, lamento e morte o “prelaterio dos deuses” responde com desprezo. O desprezo de Sísifo se manifestava no seu trabalho.
“Só vemos todo o esforço de um corpo tenso ao erguer a pedra enorme, empurrá-la e ajudá-la a subir uma ladeira cem vezes recomeçada; vemos o rosto crispado, a bochecha colada contra a pedra, o socorro de um ombro que recebe a massa coberta de argila, um pé que a retém, a tensão dos braços, a segurança totalmente humana de duas mãos cheias de terra. Ao final desse prolongado esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a meta é atingida. Sísifo contempla então a pedra despencando em alguns instantes até esse mundo inferior de onde ele terá que tornar a subi-la até os picos. E volta a planície” (CAMUS, 2010, pág. 138)
Somos todos Sísifos erguendo nossas rochas repetidas vezes. Essa é a tragedia de nossa condição. Mas ao mesmo tempo que contemplamos a extensão da pedra podemos buscar em alguns momentos a sensibilidade. Lembro do Pêndulo de Schopenhauer: a vida oscila entre a dor e o tedio… Isso resume a vida de um homem que compreende seu absurdo, mas ainda espera que a morte lhe dê algo para que chame de paz. Se imaginarmos que o trabalho de Sísifo é um pendulo entre dor e tedio, ainda haveria os momentos entre a subida e o rolar da pedra cheios de vida, onde Sísifo poderia contemplar o mundo do alto do monte e entre o tedio e a dor encontrar a vida sensivel que o mundo expressa em pluralidade.
Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua miserável condição: pensa nela durante a descida. A clarividência que deveria ser o seu tormento consuma, ao mesmo tempo, sua vitória. Não há destino que não possa ser superado com o desprezo.” (CAMUS, 2010, pág. 139)
Imaginar Sísifo feliz é afirmar o valor de uma vida que se mantem sem apelos, sem eternidades, se segunda chances. A consciência absurda de Sísifo é a felicidade oriunda de uma cognição que reconheceu seus limites e não eliminou os termos da controversias da existência. Sísifo na medida que volta ao encontro de suas rocha no sopé do monte oberva a vastidão e afirma sua vitalidade, sua tragedia em toda sua revolta!
Referências:
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad: Ari Roitman e Paulina Watch. Rio deJaneiro: Bestbolso, 2010.
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos. Trad: Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2006.